Nunca fui boa em fazer escolhas. Assim como Evelyn, protagonista de Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo, sempre penso no que poderia ter sido caso aos 11 anos eu não tivesse mudado de escola ou se, caso aos 17, eu não tivesse escolhido o curso que escolhi. Teria eu as mesmas amizades? As mesmas relações amorosas? Sequer estaria aqui? O "e se" sempre esteve comigo, permeando minhas escolhas a minha vida inteira. Perceber dilemas similares em filmes, para mim, sempre foi uma forma de me entender também. Talvez por isso Senhor Ninguém (2009) tenha sido meu filme favorito por tanto tempo, pois assim como Nemo Nobody, perceber e conviver com as consequências das minhas escolhas é o medo que por vezes me paralisa de seguir. Para mim, a teia infinita de caminhos que surgem a cada pequena escolha que tomamos, será sempre um misto de fascínio e constante angústia - e, talvez por isso, um dos meus temas favoritos.
Assim, já dá para perceber que Tudo Em Todo Lugar ao Mesmo Tempo tinha boa parte dos pré-requisitos necessários para me emocionar, afinal, discutir sobre a nossa irrelevância no vasto e infinito universo, sobre como "nada importa" a não ser o aqui e agora e sobre como a felicidade está em minúsculos espaços de tempo, é discutir tudo que eu acredito veementemente que a vida seja sobre - mas não foi o que aconteceu. Ainda que a reflexão sobre a existência e a busca por sentido tenha me atraído e que o filme, ao final, se apresente como um alívio para os angustiados com a própria existência como eu admito ser, antes de me consolar e me abraçar, ele me afastou para longe, com seu excesso de repetições desnecessárias e, principalmente, sua vontade incontrolável (e muito irritante) de explicar-se. A todo instante e custo.
Como quem tem total noção do caos desnecessário que provoca, o novo filme da A24 definitivamente não confia na potência das próprias imagens para transmitir sua mensagem principal. Então, precisa mastigar repetidas vezes ao espectador seu discurso niilista primário e superficial, através do recurso mais empobrecido possível no Cinema, que é o texto, ao menos umas trinta vezes durante a trama. Com cerca de quarenta minutos de filme, o primeiro capítulo já entrega tudo que o longa vai se tornar ao final. Foi possível entender mais cedo do que eu queria que ao final Evelyn vai perceber a dádiva de ser mediana e usar isso a seu favor dentro da sua vida pacata, em seguida resgatar os laços com o marido e a filha e, enfim, se perceber como alguém que deveria apenas aproveitar o agora como merece (muito embora ainda ache a filha gorda e ainda a perceba como alguém que não quer ter por perto a maior parte do tempo), porque... Porquê mesmo? Ah, porque "nada importa". A frase-chave, o mantra do filme. No qual ele mesmo não parece acreditar.
Vejamos: quando Evelyn dá o seu primeiro salto no multiverso e vê como seria a sua vida como atriz, o recurso do flashback seria suficiente para entender a lógica das habilidades que a personagem irá demonstrar dali pra frente. Contudo, mesmo assim, mais uma vez sem confiar na potência das suas imagens para transmitir mensagens, algo básico do Cinema (ao menos deveria ser), o filme recorre ao texto e faz o personagem de Waymond, marido da protagonista, explicar para nós o bê-a-bá desse multiverso, de novo. É o que vai acontecendo, várias e várias vezes, durante o filme. Como quando Evelyn espera toda uma cena se desenrolar da forma mais bizarra que poderia, para finalmente fazer a pergunta que todo mundo já sabia a resposta desde a cena anterior (onde a sombra de Joy aparece com um capuz), sobre quem seria Jobu Tupaki. Esses são apenas alguns exemplos desses momentos que acontecem, repetidas vezes, até tornar o filme incrivelmente cansativo. O excesso de explamação retira aos poucos o elemento-surpresa da sua conclusão e leva consigo boa parte da nossa capacidade interpretativa, esvaziando o poder das suas imagens com a obviedade das palavras.
O filme, então, torna da autoexplicação o seu vício mais problemático. Digo mais problemático porque é justamente esse vício o responsável pelo que este tem de mais fraco, que é o seu desfecho. Na ânsia de fechar todos os pontos e dar um sentido a todos os personagens, Tudo não se contenta em encerrar o arco da protagonista Evelyn, da sua filha e no máximo, do marido Waymond. Não. Ao invés de fechar os pontos pelo caminho mais simples e impactante, também vai querer empurrar à força mais história do que já presenciamos, quando ao final decide erroneamente por misturar todo mundo na mesma salada mista, atribuindo a todos os personagens, incluindo o avô e à personagem de Jamie Lee Curtis, o mesmo nível de importância da família principal na trama. Como se seus desfechos justificassem a extensão dessa já tortura em forma de imagem em mais uma hora, já no terceiro capítulo.
Como se não bastasse, o que me parece é que Tudo em Todo Lugar apenas desejou ser profundo, mas não conseguiu abraçar essa complexidade por completo e uni-la ao absurdo. Isso sim seria algo que o tornaria em tese muito original, mas não foi o caso. Pelo contrário, o filme usou do “escracho” apenas na intenção de vender-se enquanto diferente mas, na realidade, nenhum dos dois aspectos funcionam muito bem e ele morre na praia como uma confusão imagética, cheio de detalhes e simbolismos em seus planos que não comunicam nada além de uma mensagem pseudointelectual, se vendendo na intenção de ser discutido em sua filosofia barata. É uma falsa profundidade, imposta apenas para ter em que se apoiar. Entender o que é o “donut”, por exemplo, acaba sendo desnecessário já que tudo que você pode saber sobre ele não poderia estar mais "em negrito" na tela. Mesmo na cena das pedras, é vergonhoso como o filme quer manter o controle a todo custo, mesmo passando uma mensagem completamente oposta a isso - e funcionando muito mais quando não existe tanta explanação.
O que me faz pensar que, das duas uma: ou realmente eu estava correta em perceber que o caos causado ali é desnecessário e distrativo ou, é ainda pior que isso, e a explicação é que o filme subestima quem o assiste, como se a sua mensagem filosófica fosse complexa a ponto de necessitar ser reforçada, já que martelar esse conceito seria a única forma de ser entendida pelo espectador comum. Uma grande mentira pois é mais do que claro que sua lição final não é apenas óbvia e superficial como também pouco original, já que várias outras vezes no Cinema, seja no filme que citei no início, Senhor Ninguém (2009), seja em I Origins (2014), seja em Red (2022), ou mesmo nas próprias referências que os irmãos Daniels usaram, como Matrix (1999), as mesmas ideias já aparecem em outra roupagem. Diga-se de passagem, ainda desenvolvidas de forma muito superior, sem metade das firulas narrativas que aqui encontramos.
Admiro muito a sede inenarrável do filme pelo absurdo, e acho que esse é o único aspecto que de fato me impede de vê-lo como um total fracasso. O Cinema é o único lugar possível onde o absurdo pode ser normal e onde o extraordinário pode ser, sem dúvidas, o mais absurdo. Mas, no deserto tenebroso de originalidade em que vivemos, confundir o original bom com o absurdo mediano pode ser mais comum do que parece. E eu acredito que seja o caso aqui. Os irmãos Daniels sempre trabalharam com filmes onde a ideia do que não faz sentido é bem-vinda, por isso, um filme de multiverso é libertador. Mas, libertador mesmo é deixar ser compreendido. E eu não me senti livre. Eles estavam no controle, e eu estava apenas vendo uma sucessão de acontecimentos completamente bizarros se encaminharem para um final tão piegas que não teria defesa.
É decepcionante não conseguir entender como um longa com tanta coragem em sua forma e tanto estilo próprio, acaba se perdendo tão facilmente em si mesmo. Parece ser uma questão comum dos filmes da A24, isso de “explicar suas metáforas”. Produções que vestem uma roupagem inteligente, se vendem como muito diferentes, mas não raro são apenas mais do mesmo, em uma embalagem mais conceitual. Não é difícil de entender, mas quer que você pense que sim. Por isso vai te levar em uma jornada de duas horas onde imagens são conjugadas com textos mastigados. Isso pode te dar a impressão de que você quebrou um código indecifrável (Midsommar, Hereditário, O Farol), quando, na verdade, estava ali o tempo todo. Você só foi distraído o suficiente com o excesso para não deduzir logo nos primeiros minutos.
Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo tem todos os problemas desses tipos de filme que na tentativa de ser muito inteligente, usa e abusa de firulas narrativas (seria uma patologia de Nolan?). Para um filme onde “nada importa”, deixar o espectador ciente de tudo, a todo tempo, parece importar demais. Não é fiel ao próprio mantra e, para nós, o custo disso é a total desconexão, onde a decepção e a fadiga mental são inevitáveis. Quando se encerra, o filme já parece ser muito inferior a qualquer outro já lançado com a mesma lição de moral. Se torna um belíssimo exemplar daquilo que não deve ser feito em termos de Cinema, no que tange à abrir pouquíssimas brechas para o espectador interpreta-lo. Vende um descontrole apenas aparente, pois insiste em estar no comando do que se entende sobre ele. Mesmo sendo corajoso em outras tantas escolhas, principalmente de visual, é preciso entender que para nem todo bom filme basta coragem. Caso fosse, obras-primas dariam em árvores. Ou se ramificariam como multiversos. Originalidade e disrupção nascem de muitas outras maneiras, mas eu posso ter certeza que não nascem daqui.
Parabéns, achei que tivesse sido a única pessoa a não gostar do filme. Muito cansativo, diria até chato pra caramba de tão repetitivo, pra no final ser tão obvio.