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  • Foto do escritorFabiana Lima

Retratos Fantasmas: a arquitetura e a vivência da cidade de Recife na obra e na vida de KMF.

Em O Som Ao Redor (2013) e Aquarius (2018), Kleber Mendonça Filho já demonstrava ter uma certa simpatia pelo uso da arquitetura e da cidade do Recife como motes principais de suas tramas. No primeiro filme, Kleber põe em voga questões que afetam a classe média recifense, e que ao mesmo tempo conseguem ser o espelho da classe média de todo país. Enquanto em Aquarius, aborda a arquitetura sob o viés urbanista, apontando o desenvolvimento das cidades e as questões sociais que surgem a partir de um descontrolado crescimento dos centros urbanos, como um dos principais problemas do Brasil contemporâneo.


Por conta desses dois filmes, principalmente, KMF sempre teve sua filmografia muito associada à Recife e à vivência urbana, de modo geral. Sempre refletindo em suas obras uma preocupação social muito interessante sobre o ambiente em que seus personagens vivem e como, ultimamente, esse local afeta suas vidas e suas decisões. No entanto, até agora, o diretor nunca tinha falado de forma muito pessoal ou íntima sobre essa influência. Sempre foi mais fácil para nós inferir que a sua relação com Recife era meramente de quem nasceu e se criou na cidade - nada muito além disso.


Só com Retratos Fantasmas essa relação ficou mais clara - e muito, muito mais complexa. Dividido em três partes, o documentário que estreou em sessão especial em Cannes, vai aprofundar a infância e adolescência do diretor no apartamento comprado pela mãe e as lembranças das gravações de filmes que foram feitos por lá (incluindo O Som ao Redor) no primeiro momento, para então depois abordar a relação de Recife com os cinemas de rua, incluindo nisso a sua própria relação com esses ambientes os quais contribuíram para a sua formação enquanto cineasta.


Narrado em voice over pelo próprio diretor, o filme reúne gravações, fotos e mapas da cidade para montar um quebra-cabeça de Recife através dos tempos. O que eu achei mais curioso, além do trabalho intenso de pesquisa que deve ter sido feito e da curadoria também um tanto quanto trabalhosa, foi o tom cômico que KMF acaba adotando nessa história profundamente pessoal. Mesmo que seus filmes anteriores já adotem a veia do humor (vide Bacurau), foi interessante perceber como Retratos utiliza de rimas visuais para enfatizar e dar comicidade, ao mesmo tempo, ao texto falado.



Um dos melhores momentos do filme e que arrancou risadas genuínas da plateia é quando o diretor diz ter um problema com uma invasão constante de gatos que passaram a morar na casa do vizinho e que, para evitar que os animais entrassem na casa, precisaria transformar o apartamento em um bunker: colocando uma cerca elétrica. Na cena seguinte, um gato passa tranquilamente por entre os arames de metal. Outro momento genuinamente engraçado é ao final, quando em um uber KMF conversa com o motorista que diz ter um superpoder: pode ficar invísivel quando assim desejar. E simplesmente some.


Esse humor é importante pro filme, não apenas por nos fazer ver um outro lado do diretor, mas porque funcionam para quebrar a forte carga dramática do que a obra acaba se revelando ser: um retrato triste de uma cidade cujos cinemas se tornaram meros fantasmas, e onde, na vizinhança que antes KMF estimava casas de muro baixo, surgem grandes construções edificadas e sem personalidade alguma. Partindo de uma narrativa íntima, micro, sobre sua própria família, o documentário termina como um relato e uma denúncia de proporções macro, de um fenômeno lamentável que não ocorre só em Recife, mas no país inteiro.


As cidades mudaram e nós que, por último, perdemos muito nessas mudanças. Hoje, o que antes eram espaços de celebração da cultura ou mesmo áreas para se viver, bairros com casas e socialização diária, tornaram-se farmácias - como um vírus, abre-se uma atrás da outra. O retrato mais interessante e condizente de uma sociedade verdadeiramente doente pela modernização é o frame final desse filme que me encantou profundamente e se tornou, assim, um dos meus favoritos de Cannes 2023.

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