Talvez possa ser meu recém-iniciado caso de amor com o Giallo falando mais alto, mas tenho minhas suspeitas se Edgar Wright não estava fazendo suas anotações quando Mario Bava fez Seis Mulheres Para o Assassino e Dario Argento fez Suspiria. Last Night in Soho pega emprestado as cores vibrantes da obra icônica do cinema de Argento (vermelho, verde e azul em sincronia perfeita) e a relação inicial da protagonista com um local estranho a ela, para depois misturar essa tensão com o irresistível e estiloso universo da Moda e o whodunit (diferente, mas ainda lá) surpreendente da obra de Bava. O resultado? De aterrorizantes manequins sem face a uma explosão de neon, do estilo icônico sessentista ao trabalho magnífico da direção de arte, Wright abraça o absurdo para construir um clímax que vai agradar todo mundo - mas nem por isso é menos genial.
O mais curioso não é apenas como o diretor absorve toda essa influência do estilo dos terrores italianos e dos slashers para contar sua história - até porque James Wan já havia feito algo parecido com Maligno - mas sim como ele faz isso e ainda é capaz de imprimir a sua personalidade em cada detalhe. Desde o início, Last Night In Soho não esconde que opta por uma via mais moderna e é essa escolha acertada que ajuda a construir uma história que ainda que possua referências cinematográficas antigas e boa parte da sua ambientação nos anos 60, preservar algo muito atual. Quando Wright opta por transformar a história da protagonista em um ensaio psicológico sobre sua inadequação, solidão, dissociação e perplexidade diante de sua nova realidade, surge então um debate interessante sobre ser mulher, que é provocado a partir da retratação de uma sociedade machista e patriarcal em contraste com a idealização da protagonista mentalmente abalada que imagina ser outra pessoa que não si mesma nos seus sonhos em pleno anos 60. Da fantasia ao pesadelo, o ideal de felicidade da protagonista desmorona diante dos nossos olhos e logo fica clara a frustração, cena após cena, onde vamos embarcar com ela em uma jornada cruel de autoconhecimento que lhe dará uma nova perspectiva sobre a vida.
É natural que esperemos visões bem menos sensíveis à questões femininas quando sabemos que um homem está por trás da condução de uma obra, mas Wright impressiona positivamente no filme e parece entender muito bem aonde quer chegar com suas escolhas. Do vestido rosa e inocente de Anya, à decupagem sempre com um foco certeiro nos grandes e expressivos olhos da atriz, são os detalhes que vão demonstrar a preocupação honesta (e muito válida) do diretor em sempre buscar o tom certo para contar essa história. Sem sensacionalismo e sem objetificar suas protagonistas, mesmo quando percebemos estar diante da história devastadora de uma mulher abusada, que é prostituta, a escolha de Wright nunca é de expor o corpo desta como uma ferramenta para contar a história, mas sim de ressaltar a sua flagrante e crescente vergonha de si mesma, noite após noite, sendo apresentada como mercadoria para homens estranhos em bares, fazendo o espectador entender de maneira sutil o que ela sente, embora em nenhuma cena antes do final ela de fato verbalize isso.
Há uma relação de empatia e sororidade profunda entre as duas protagonistas, pois embora vivam em épocas diferentes, ambas estão ligadas pela vivência de ser mulher. Quando Ellie chega na grande Londres, o assédio já foi a primeira situação a qual foi exposta, antes mesmo que pudesse conhecer seu dormitório. A paranoia crescente dela, que passa a ter pesadelos acordada com repetidas imagens de homens desfigurados que a perseguem por toda parte, me leva a crer que estes são, de fato, todos os homens que vê. O medo é realmente algo paralisante para ela nesse novo mundo que enfrenta na cidade e, no fim das contas, quando nós mulheres falamos que todos os homens são agressores em potencial, o filme não poderia deixar mais claro o porquê. Pode parecer uma analogia rasa ao primeiro olhar, mas é nessas escolhas que mora a sensibilidade de Wright e faz do clímax um dos pontos mais interessantes do desenvolvimento da trama. Não ver esses homens de forma clara é justamente o ponto de tudo isso, pois o terror está em não poder prever.
Em contraste com essa história pesada, o clima pop do filme, que me lembrou o vencedor do Oscar desse ano, Bela Vingança, sabe usar a trilha a seu favor, às vezes introduzindo-as quase como um alívio cômico e, por ser um filme sessentista, tem um destaque único no figurino e na maquiagem. O já icônico vestido rosa balonê, utilizado por Anya Taylor-Joy na cena da dança, se tornou automaticamente um dos meus looks preferidos do cinema. Em Last Night In Soho, o estilo é atração à parte e lhe confere uma elegância interessante e identidade inconfundível diante dos demais lançamentos do ano. Junto à direção de arte e a fotografia, reforça-se sempre o distanciamento, ainda que momentâneo, da atmosfera pesada. A cada cena, Last Night se entrega completamente à explosão de cores primárias e letreiros em neon, com muito contraste, abrindo o caminho para um thriller pop (quase) perfeito. Não fosse pela demora em chegar onde quer mais rapidamente.
Do ponto A ao ponto B o filme se prolonga repetidas e desnecessárias vezes e, por muitos momentos, achei que perderia por completo a sua força. O que começa como uma explosão, vai diminuindo o seu ritmo lentamente até atingir novamente o máximo com o clímax - e cair de novo, na cena final. Muito embora consiga unir as peças do quebra-cabeça e tenha um desfecho surpreendente o suficiente para manter nossa atenção, peca vez ou outra por não construir uma consistência lógica, subdesenvolvendo todos os personagens que não sejam as protagonistas e, apenas por isso, para mim não se consagra como um thriller pop tão perfeito assim. Contudo, ainda que não seja unanimidade em todos os sentidos, não se pode negar que o Wright faz é corajoso e original. E por isso, já merece, no mínimo, toda nossa atenção.
Argento fez uma história de terror sobre bruxas. Bava aumentou um passo na discussão para fazer uma história de terror sobre uma mulher extremamente poderosa que se torna uma assassina a sangue frio em nome de retomar seu próprio controle. Wan, anos depois, aumentou mais um degrau e fez uma história de terror incrível com uma metáfora profunda sobre violência doméstica. E Wright fecha o ano de 2021 com um terror social sobre uma sociedade patriarcal que abusa e traumatiza mulheres e que nunca mudou, só foi atualizado. É, sem dúvidas, um péssimo momento para aqueles que sobrevivem do chamado pós-terror, amando o gênero apenas quando segue as regras do que é verossímil. Se o que Edgar Wright faz nessa história, retratando a nossa vivência perturbadora enquanto mulheres e escancarando a nossa batalha diária contra o medo paralisante do abuso não é uma verossimilhança suficiente, não sei o que poderia ser mais social e mais importante do que isso.
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