O processo de socialização feminino pressupõe a obediência às regras: seja educada, não responda, não grite, seja gentil, sente de pernas fechadas, baixe a cabeça. Nos acostumamos, desde o princípio das nossas vidas, a obedecer o que se espera de nós como a única saída, uma regra incontornável, um preço alto que pagamos sem reclamar apenas para sermos amadas, aceitas. Ou, simplesmente, casadas (o que para muitos, equivocadamente, dá na mesma).
Frequentemente imagino como seria inverter as posições de poder que me foram endereçadas sem que eu solicitasse. Penso em como seria se tudo que esperam de mim, eu fizesse o justo contrário. Imagino com certa frequência as minhas imperfeições como instrumento hipotético de uma aceitação social plena, como se o que fugisse do padrão e destoasse da minha condição enquanto mulher fosse uma espécie de super poder. Então acordo. Não que eu deseje me tornar uma heroína, talvez eu queira mais é ser vista como monstro mesmo e deseje, ultimamente, me tornar um ser desfigurado, sim, mas com tamanha força de protagonizar uma revolução - especialmente nos momentos que o perigo reside no fato de me apresentar desejável, urgh. É nesses momentos que esse desejo reaparece com toda força.
Enquanto assistia Pobres Criaturas, novo filme do diretor Yorgos Lanthimos sobre o qual aqui escrevo, veio o estalo fruto da minha divagação inicial. Muito provavelmente, pensei, se Mary Shelley, ao escrever seu romance clássico no século XIX, criasse a criatura de Frankenstein sob a perspectiva de uma figura feminina que tivesse como principal objetivo romper com as visões pré-concebidas de gênero, mais parecida com a que temos em 2023, estaria sem dúvidas bem perto do que Yorgos construiu este ano no cinema.
No filme vencedor do Leão de Ouro em Veneza, Emma Stone é uma protagonista desafiadora e atípica. Trazida de volta à vida após uma tentativa de suicídio enquanto estava grávida, Bella Baxter não lembra de como era o mundo antes de ter o cérebro do seu próprio filho colocado no local do seu. Com corpo de mulher, mas um desenvolvimento cognitivo infantil, ela se torna experimento para homens que a veem como uma espécie de boneca que podem manipular a bel-prazer. Até a situação mudar de forma e estes perceberem que são os verdadeiros manipulados. É quando o machismo toma de conta das atitudes dos personagens masculinos que quanto mais tentam podar Bella, mais a encaminham para sua emancipação.
O começo é bem parecido com muitos outros filmes, Bella Baxter enquanto experimento aceita todas as ordens de seu mestre: não sai de casa, não desobedece e não se toca. Ao trazer um ajudante de fora da casa para auxiliar na monitoração do crescimento de sua “obra” mais recente, o mestre põe o ambiente em situação de desequilíbrio e Bella ganha desejos próprios. Deixa de ser o objeto de estudo e passa a ser o objeto de fascínio, mas ilude-se quem pensa que ela deixará de seguir seus anseios e convicções em prol de uma vida a dois. Especialmente se isso significar tolher sua liberdade sexual.
É interessante como o filme se transforma à medida que esse “monstro” percebe a sociedade que a rodeia com cada vez mais perda de sua própria inocência O mundo de fantasia, de faz-de-conta de Yorgos é uma espécie de subversão de Barbie (2023). Embora ambos filmes encontrem um ponto de conversão na forma com que analisam a cobrança pela perfeição feminina e tudo que envolve o já comentado processo de socialização e percepção de mulheres em sociedade, todo o resto os separa na forma como aqui se lida com o mundo.
O universo de Yorgos é um conto de bonecas imperfeitas, desconfiguradas, imersas em um mundo cuja sobriedade de cores é sinônimo de um pessimismo que vai se mostrando cada vez mais difícil de escapar. Nessa versão “rated R” de um filme de bonecas, o feminismo tem um tom diferente, parece que ao invés de encontrar o ponto comum com os Ken, abandona-se a fantasia de que homens compreenderão nossos pensamentos por completo por isso mais vale dominá-los do que fazer mea culpa.
O uso dos efeitos especiais, especialmente do CGI, na criação de um universo nada "realista" e sim, excêntrico por demais, é sinal de que o diretor parece estar cada vez mais à vontade para explorar seu próprio estilo, onde os cenários e a construção de um universo bizarro condiz com o cinismo dos personagens e reforça uma relação de poder que exala uma dominação, uma hierarquização que irá refletir na subversão da ideia de uma igualdade de gênero.
Essa característica é a raiz da ironia e da autoconsciência que torna de Pobres Criaturas um dos mais divertidos filmes do ano. Escrachado e deveras expositivo, Yorgos sabe que seu conto feminista poderia muito bem sair pela culatra no século XXI onde o reacionarismo parece residir tanto à direita, quanto à esquerda, mas é aí que ele usa o sarcasmo como sua terceira via particular e contorna qualquer possível constrangimento em uma piada que faz antes de qualquer um, consigo mesmo.
Nasce, assim, um filme memorável que possivelmente une todos os traços do que há de melhor da filmografia do diretor. As relações de poder e as distorções que acontecem em Dente Canino (2009), meu filme favorito dele até Pobres Criaturas surgir, o cinismo e a ironia presente em A Favorita (2018), a atenção aos detalhes de O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017), a desinibição de A Lagosta (2015) e Nimic (2019). Todos os traços mais marcantes do seu cinema convergem para construir um filme que explora um tema tipicamente feminista o qual, mesmo diante da possibilidade de uma distorção futura que discussões de internet e twitter poderiam levar, realiza com imensa qualidade a proeza de se manter inventivo e divertido, ao mesmo tempo.
Desmistificando a ideia de que homens seriam incapazes de compreender e realizar obras que deem voz à psique feminina de forma fiel ou minimamente coerente, o diretor me provocou um estalo dos mais honestos. E se Greta me fez acatar minhas imperfeições enquanto humana, Pobre Criaturas me fez querer transmutar em um monstro e romper, enfim, com as ideias que impuseram sobre mim, desobedecer as ordens, recusar o status quo e buscar algo diferente. Distorcido, mas real.
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