Em um país multifacetado de dimensões continentais como o Brasil, são muitas as histórias de pessoas comuns que podem passar despercebidas pelo nosso Cinema. Não por serem menos interessantes, mas porque dificilmente há alguém interessado em contá-las.
Nesse cenário, Carolina Markowicz é uma exceção. À diretora importa bem mais a história de quem vive à margem de uma sociedade caótica, dentro de uma dinâmica capitalista, moderna e excludente, que as ondas de cinebiografias e os prováveis sucessos de bilheteria que narram nas telas grandes superações.
Em Pedágio, a história de uma mãe solo e um filho LGBTQIAP+ ganha nuances de cor e sombras frente o cenário melancólico e poluído da cidade de Cubatão, interior de São Paulo. Quase como se conseguíssemos inalar a fumaça que cerca aqueles personagens, nos vemos imersos em uma narrativa que comporta com hipnotizante naturalismo, daqueles que vemos em filmes como Um Dia e Duas Noites (2014) dos irmãos Dardenne, o drama que é viver aprisionado no próprio corpo - ou no próprio trabalho. Aqui, nos dois. O pedágio enquanto um cubículo aprisionador da alma e das noções de mundo daquela mãe que acredita proteger o filho do mal que ela mesma o impõe, dentro de casa. Casa essa que vira para o filho, ironicamente, o que esse ambiente desolador é diariamente para a mãe.
Por meio de uma premissa simples e pouquíssimos personagens, a diretora irá tecer um comentário social e político pertinente do Brasil atual que mora especialmente nos detalhes e nas dinâmicas retratadas. Tudo que se desenrola no decorrer do filme acaba por relacionar-se diretamente com toda uma universalidade temática, especialmente no que tange ao capitalismo massacrante, a homofobia e o radicalismo religioso. Através da amiga de trabalho, por exemplo, a protagonista conhece a "cura gay" propagada pela igreja enquanto um tratamento, enquanto que através do namorado, ela é corrompida moralmente, acreditando esta ser a única forma de pagar por este.
É interessante como mesmo diante de uma grande quantidade de temas, a Markowicz permite que estes façam várias interseções entre si sem perder o humor. A amiga de trabalho e o pastor estrangeiro são por muitas vezes verdadeiros alívios cômicos do filme e levam a gente a rir diante da hipocrisia religiosa e do absurdo. Eu gosto como a diretora tem um olhar profundo e complexo sobre o próprio filme, mas não deixa de impactar diante da simplicidade da tela. A câmera está sempre passeando pela vida daquelas pessoas, seus corpos e suas vivências múltiplas, sem se preocupar em julgá-las em nenhum momento.
O filme possui aquele frescor de filmes independentes modernos, cuja maior preocupação é filmar seus personagens com profunda honestidade. Esse naturalismo se passa para a construção do filme, em escolhas que pouco parecem focar em construir uma decupagem muito fragmentada ou elaborada, com razão, o que acaba fazendo o filme recair em uma veia mais documental, crua, até, onde em sua maioria tudo que é filmado fica entre planos médios ou abertos, deixando que a cidade seja conscientemente incorporada à narrativa. É sobre as pessoas interagindo com o ambiente, da mesma forma que o ambiente também interage com elas.
Pedágio se qualifica pela simplicidade e honestidade, a qual emociona principalmente pela maior dramatização de momentos-chave, mais e mais tocantes quando o filme vai se aproximando do final Me agrada a forma como Markowicz percebe esse mundo que todos nós fazemos parte, mesmo que sem uma consciência plena de como funciona.
O personagem de Kauan Alvarenga é puro amor, cor, alegria e esperança. A não desistência em ser quem é em todo o filme é verdadeiramente emocionante e só de saber que seu personagem representa uma parcela significativa de pessoas LGBTQIAP+ no Brasil e no mundo, é de partir o coração em mil pedaços. A cena final exemplifica o que eu senti e, durante muito tempo, vai ser guardada com muita ternura em minha cabeça.
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