Tudo passa, tudo passará. A grande canção de Nelson Ned é um clássico de bar brasileiro. Junto de “Boate Azul” de Benedito Seviero, inúmeras canções de Reginaldo Rossi, Odair José e Waldick Soriano, por exemplo, são expressões máximas da dor de um amor que se foi, de um chifre doído, de um relacionamento complicado. Nas letras dessas músicas, sempre cantadas por homens, mulheres são as personagens principais. Contudo, nos ambientes em que as canções estão presentes, elas são uma raridade.
Como uma criança nordestina dos anos 90, o brega está atrelado à minha criação. Canções doídas de Reginaldo Rossi eram cantadas às alturas pelo meu avô, já falecido, um homem com origens piauienses que, assim como os personagens de “Oeste Outra Vez”, encontrou na bebida uma grande amiga após o descobrimento de um câncer. Faleceu se recusando a ir ao hospital, tomar remédios ou se tratar, o bar era o maior tratamento de todos os dias.
Em “Oeste Outra Vez”, o grande vencedor do Festival de Gramado este ano, Érico Rassi, fala sobre homens brasileiros com meu avô. Homens cuja expressão de masculinidade não precisa vir acompanhada da palavra “tóxica”, pois já é, em si, autodestrutiva. Nessa história, no sertão de Goiás, o mundo é um grande bar - não existem mulheres. Eles conversam sobre elas, sofrem por elas, são capazes de até matar por elas, mas jamais são vistos com elas. A única mulher presente neste filme não tem fala alguma e, ao deparar-se com o conflito masculino, caminha para bem longe dali, aos poucos, misturando-se com o calor do sertão como se fosse miragem.
A câmera austera de Rassi mantém-se tão distante desses personagens como eles se mantêm de si mesmos, recusando-se a acessar suas fragilidades. Os cenários áridos e desprovidos de vida, ambientes sem cor e cujo calor enlouquece, se misturam a esses dilemas íntimos que só são extravasados através da expressão de violência. Da arma de fogo à pinga, da distância dos corpos à forma como economizam palavras, são homens completamente reféns de uma estrutura que impõem a si mesmos.
Amargurados e profundamente tristes, não foram ensinados a amar. Nem uns aos outros, nem às mulheres. Quando se referem a estas, o fazem na condição de vê-las como uma necessidade de companhia, para manter a casa organizada. Não são mulheres, no fundo, são propriedades suas a lhe realizarem determinadas funções, e é por isso que os homens estão abandonados à própria sorte, todos tão cegos pela própria noção distorcida do amor que mal percebem que eles mesmos o repelem. Envoltos em si mesmos, não encaram a dor tempo suficiente para assumir sua parcela de culpa, nem mesmo para perceber que a escolha de Luisa por não voltar talvez seja por ter suas próprias vontades. Apenas.
É nesse viés que o faroeste aparece como o gênero cinematográfico perfeito para retratar as fragilidades dessa masculinidade. No cinema contemporâneo, principalmente, como forma de desconstruí-la. Em 1992, Clint Eastwood pensou sobre isso no irretocável “Os Imperdoáveis”, em que dois pistoleiros buscam vingança em nome de uma prostituta. Em 2017, Chloe Zhao com “Domando o Destino.” Em 2019, foi a vez de Kelly Reichardt com “First Cow - A Primeira Vaca da América” - uma narrativa inclusive bem parecida visualmente com a que Oeste adota. Em 2021, Clint volta a abordar o tema em “Cry Macho” enquanto Jane Campion se debruça sobre o masculino e a homoafetividade em “Ataque dos Cães.”
Eis uma pequena lista exemplificativa - jamais exaustiva - de filmes contemporâneos que, através dos códigos do faroeste, propõem reflexões inúmeras sobre a expressão da masculinidade, ao passo que desconstroem e desestigmatizam a figura do cowboy que de forma máxima o representa. Algo que Oeste Outra Vez também faz. O personagem de Rodger, que ganhou o kikito de Melhor Ator Coadjuvante, é um cowboy “falso”, um pistoleiro que mente ser pistoleiro e que, de forma diferente, se mostra um ser tão fragilizado e magoado quanto o protagonista.
Os grandes “machos” dessa história são sujeitos que desafiam o que entendemos sobre essa palavra, pois percebemos não se tratar de nada além de uma performance. De virilidade, de agressividade, de violência. Nos bares de um Brasil inteiro, homens continuam a performar uma masculinidade autodestrutiva e misógina, todos os dias. Substituem os diálogos construtivos por uma economia de palavras e espaços vazios, como o filme. Eles entregam suas dores à bebida e se sentenciam a mascarar eternamente sua dor.
O mais danoso disso tudo é que esses homens atiram metafórica e literalmente para todos os lados e esses tiros, lamentavelmente, têm acertado muitas mulheres para além de outros homens. O filme de Rassi, nesse contexto, é sobre aquilo que não é dito, é sobre uma jornada para lugar nenhum. Em muitos outros filmes, os personagens voltariam diferentes, mas aqui eles permanecem os mesmos, insistindo no mesmo erro até que a morte os atravessasse. Um pessimismo que, com seus momentos cômicos, faz do filme agridoce. Mais amargo que doce.
Oeste Outra Vez, além de extremamente bem executado e autoral, é um faroeste com referências de cinema e uma forma à brasileira, ainda assim, que encontra uma maneira de falar sobre homens e, também, para homens, sobre seus problemas mais enraizados. Nisso, o filme mantém uma força e coerência absoluta, do início ao fim, culminando na montagem paralela final, na imagem grotesca de um vaso sanitário cheio de sangue e cigarros e um choro preso na garganta. “Homens serão homens” e nisso de “tudo passa”, absolutamente nada fica.
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