Idealizado para ser uma narrativa ficcional, o filme de Fábio Meira se transformou e se reinventou ao longo do processo de quinze anos de feitura. O diretor divide com o espectador, em uma espécie de prólogo durante os primeiros trinta minutos de filme, as mudanças pelas quais a obra passou. A ideia central, discutir o circo mambembe por meio de uma ficção, se tornou desinteressante à medida que as pessoas que constituem o circo no "mundo real" pareciam roubar a câmera para si a cada aparição.
Madonna e Índia são duas dessas personagens hipnotizantes, as quais justificam a escolha do diretor por abraçar (em partes) a ideia de documentário. Em parte, pois entrelaça a ficção junto a isso e se torna cada vez mais instigante ao encarar a câmera e suas possibilidades de maneira libertadora. Ao mesmo tempo em que Madonna é uma mulher trans nordestina, dançarina do circo que, no mundo "real" nunca pensou em ter filhos, na linha narrativa ficcional ela também é uma dançarina trans, com a diferença de ter como objetivo reencontrar o filho depois de anos sem o ver.
Já Índia, no mundo "real", é a mulher da câmera, a alma do filme. É dona de um circo e uma mulher profundamente marcada pelas traições do marido. Na ficção, o filme interpreta uma história bem parecida com a sua própria, com a diferença de que o homem por quem se interessa é um topógrafo misterioso - personagem inspirado no pai do diretor. O topógrafo não apenas se parece, fisicamente, com os personagens de Abbas Kiarostami, como de fato se comporta como o Mr. Badii de "Gosto de Cereja" (1997). Não fala quase nada, é um sujeito prestativo, mas completamente isolado do mundo. Parece sofrer quieto, alegrar-se quieto. Ao fim, ele vai embora e ela, na última cena gravada, também caminha para longe em uma melancólica cena, vestindo um vestido vermelho à noite pelas ruas da cidade.
O que mais me instiga no filme é a forma como ambas as personagens, principalmente, emprestam suas almas transformadoras, carismáticas e artísticas para a obra e com isso enriquecem ambas narrativas. Como elas mesmas ou como personagens da história não finalizada de Meira, Madonna e Índia parecem inspirar para o diretor a mesma liberdade com a qual conduzem suas vidas - e isso é muito bonito de testemunhar. Ao fim, a escolha por uma narração íntima conecta o espectador com essas personagens e o tom confessional, de diário de produção, concilia tudo isso e amarra o filme em um conceito que poderia se ver facilmente perdido.
Nos braços de pessoas reais e suas andanças, os temas mundanos que circulam entre a traição, o amor e a liberdade são universais. A arte é libertadora e a vida é uma constante transformação. Nesse viés, acabou me lembrando bastante da obra de Karim Ainouz e Marcelo Gomes, "Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo" (2009). Embora conceba a obra de Karim e Marcelo como superior do ponto de vista da conclusão e da força das imagens apresentadas, "Mambembe" também possui a mesma honestidade e liberdade formal encantadoras. O filme é de fato como o circo, um lugar onde tudo se conecta, se transforma, deforma e transmuta.
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