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Emilia Perez é delirante, mais para "el mal" que para o bem.

Foto do escritor: Fabiana  LimaFabiana Lima

Finalmente revi Emilia Perez depois de assistir ao filme no auge da empolgação, em maio de 2024, durante o Festival de Cannes. Na ocasião, o filme de Jacques Audiard levou o Prêmio do Júri e o elenco feminino principal, composto pelo trio Zoe Saldaña, Karla Sofía Gascon e Selena Gomez, levou o prêmio de atuação. Assim que saí da sessão no ano passado, recordo me sentir totalmente energizada pelo filme e pela direção de Audiard. Vendo cerca de cinco filmes por dia, Cannes pode ser verdadeiramente cansativo e um filme que saia pela tangente dos moldes dos famosos “filmes de festival europeu” já parece suficiente, acredito, para chamar uma atenção a mais. Agora, revi o filme por screener da CCA, em um cenário bem diferente, quando “Emilia” já ganhou o ódio da comunidade trans, dos mexicanos e de boa parte dos latino-americanos. Dentro do furacão, aqui estão minhas considerações (espero que finais).

Emilia Perez é delirante, para o bem e para el mal (perdão pelo trocadilho infame). Primeiramente, existe uma espécie de megalomania na intenção deste filme que se reflete diretamente na maneira como Audiard o dirige: é excêntrico, é absurdo, é provocador e, para muitos, ofensivo. Outros diriam apenas francês. Após quatro viagens ao México e uma produção inteiramente feita em solo francês, a audácia do diretor realmente só pode ser chamada dessa forma, como fruto de um estado de mania, talvez?, cujo roteiro esquizofrênico embasa. Mas os números musicais são intensos, dinâmicos e muito bem filmados, ainda que as músicas deixem a desejar. É inegável: a direção francesa sabe exatamente como tornar um número musical realmente interessante de ser visto (muitas vezes, vou dizer, mais do que musicais recentes, vem algum nome na sua cabeça?), nem sempre de ser escutado, mas o suficiente para relevar. 


Na pele de uma advogada frustrada com o sistema de justiça com o qual trabalha, disposta a aceitar dinheiro sujo do cartel para mudar de vida, Zoe Saldaña brilha (confesso que, como advogada também frustrada com o sistema de justiça brasileiro, sua trajetória me convence, dada as suas proporções). Isso para mim não mudou no intervalo de quase um ano desde que vi o filme pela primeira vez, não tenho dúvidas de que a sua entrega completa a esse papel, corporalmente, é magnífica. Ela canta, dança, atua e empresta uma alma verdadeiramente humana da qual o filme, em boa parte, carece. Seja pela ausência de pesquisa, seja pelo tecnicismo exuberante. Ainda não entendi por qual motivo a campanha do filme parece ignorar a sua presença desde o início, preferindo jogar Karla Sofia ou Selena Gomez aos holofotes. É realmente frustrante. 


Dito isso, Selena Gomez parece emprestar apenas o seu talento na música mesmo. A atuação canastrona se dissolve quando o melodrama entra em cena depois de pouco tempo de tela e eu entendi mais ainda a razão pela qual a insistência da sua imagem nos primeiros pôsteres de divulgação de Emilia Perez me incomodaram, também. O filme é sobre muita gente antes de sequer ser sobre ela, narrativamente muito menos, mas funciona para o marketing, então pareceu uma boa ideia, eu acho. Já sobre Karla Sofía, eu também acredito que, assim como Saldaña, se entregou para o papel de corpo e alma, com momentos fracos e outros melhores, mas sobretudo disposta a reviver seu processo como pessoa trans durante um filme que aborda esse tema, o que eu só posso imaginar como um processo demandante, emocional e psicologicamente. 

Para mim, Emilia Perez tem bons momentos, sim, especialmente quando se leva menos a sério, quando abraça o absurdismo e assume essa viagem visual impressionante, cheia de brincadeiras com as luzes e sombras que modificam os personagens e suas feições por completo, com duplas e triplas exposições misturando a cidade, os personagens e suas ações questionáveis e, principalmente, quando beira a comédia. Particularmente, também acho que tece uma quantidade razoável de comentários interessantes e provocadores sobre o sistema de justiça e sua falibilidade, a corrupção e, claro, a reabilitação de criminosos. É interessante perceber um corpo queer em um lugar como o ocupado por Manitas, mas nesse sentido A Rainha Diaba (1974) talvez tenha muito mais a ensinar a Audiard do que o contrário.


Estamos falando sobre uma amálgama de gêneros cinematográficos: um melodrama, um musical, um filme de ação, um suspense policial, que é francês, antes de tudo, mas também estadunidense e mexicano (menos mexicano, mas tudo bem). É difícil se manter linear e é impossível tentar encontrar uma coerência aqui. Emilia Perez é um filme tão divisivo e absurdo que meu questionamento agora, ao revê-lo, vai na direção de como a Netflix aceitou financiar esse filme. É de fato uma obra megalomaníaca, efusiva, que quer abraçar mil frentes ao mesmo tempo e acaba por tropeçar várias e várias vezes em si mesma e no seu discurso durante o processo.


As representações erráticas e francamente ofensivas sobre transgeneridade e racismo ao longo do Emilia são um fato inquestionável. É muito difícil atravessar algumas cenas e não se incomodar com o resultado direto da falta de pesquisa de Audiard sobre a vivência diversa de pessoas inseridas na comunidade trans, assim como o reflexo da ausência de pessoas latino-americanas nesse set. A grande maioria das críticas feitas nesse sentido estão cobertas de razão, mas reitero que é preciso ver o filme (e não apenas um corte solto em rede social) para compreender onde, no todo, tais críticas nascem e se encaixam tão perfeitamente. Nesse mesmo viés, devo dizer que outras críticas, no entanto, me parecem equivocadas ao esperar plausibilidade de Emilia Perez, um processo que me parece, além de vão, carente de uma compreensão ampliada do que significa uma obra cinematográfica e ficcional.

Dentre muitas críticas válidas, outras que eu evito dar atenção são aquelas que não levam em consideração o universo fílmico em primeiro lugar, e é preciso dizer que a crítica de cinema (a crítica de cinema, não apenas a criação de conteúdo sobre cinema), necessita assistir ao filme e aplicar sua interpretação aos eventos que acontecem no próprio filme. Por exemplo, para a trajetória da personagem de Emília Perez, a cirurgia se apresenta como uma libertação da sua identidade. Fora do filme, podemos discutir sobre esse desejo da personagem como reflexo de um preconceito, mas jamais podemos dizer que o seu sonho é menos válido dentro da narrativa. O filme constrói bem esse desejo e ela está disposta a abrir mão de muito para ver Emilia Perez, quem sempre foi, florescer.


É possível questionar muitos outros momentos que de fato estão presentes no filme, como a mudança de voz da personagem de Karla Sofía ao ameaçar sua ex-esposa e o seu final trágico, presente incansavelmente em filmes não-queer nesse mundo, mas me parece vão e anti-crítico querer discutir a obra sob uma lógica da qual Emilia Perez não faz parte. Sua proposta é amalucada, sua amálgama é absurda e sua coerência é infinitamente questionada. Assim, para encerrar esse texto já muito longo, Emilia Perez erra mais (e feio, até) pela ausência desse olhar mais humano. Falta dar profundidade a essas personagens, cujas atrizes estavam tão abertas a a explorarem. Existe muita e boa técnica envolvida em sua proposta e, por vezes, eu sinto que Audiard caminha bem entre tantos gêneros díspares, ele conhece as maneiras certas de fluir o seu filme, mas cinema realmente não é apenas sobre técnica, é sobre alma e, nessa segunda visita, Emilia pareceu pobre de alma para mim.


A admiração por esses componentes isolados que citei ao longo texto se mantém fortes, ainda sinto que seria interessante ver mais musicais de Audiard no futuro, mas a admiração que teço agora está sob um véu de distanciamento. Emilia Perez se tornou aquele tipo de filme que não me provocará mais a ponto de dispor do meu tempo para reassisti-lo, mas também não vai encontrar em mim uma hater perene. Me mantenho em um lugar meio esquisito nesses tempos: não radicalizada, apenas desgostosa. Não odiosa, apenas frustrada. Aquele lugar onde filmes como Emilia Perez não teriam como estar, mas para mim, estão.

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