Disponível no Telecine Play.
A complexidade das relações humanas é uma pauta sempre muito bem-vinda nas obras de Ingmar Bergman. Seja aquela que mora nas palavras não ditas, como em Persona, ou na espiritualidade e moralidade religiosa, vista em O Sétimo Selo. Como nos relacionamos e o que nos tornamos a partir ou em consequência dessas, são questionamentos cujas respostas estão em um largo espectro e, inevitavelmente, provocam um fascínio existencialista.
Em Cenas de um casamento, o diretor analisa essa já conhecida complexidade das relações humanas a partir do retrato de um relacionamento conjugal imperfeito. Indo muito além do moralismo e entendendo as dimensões que fazem do amor o mais complexo dos sentimentos, Bergman consegue abordar em 1973 as mesmas questões que hoje continuam a todo vapor, especialmente no Twitter: a monogamia ou a poligamia, o relacionamento aberto, os limites de uma traição. Enquanto hoje existe um debate mais amplo e menos moralista sobre esses temas, nos anos 70, quando a realidade era bem diferente e a moral e os costumes imperavam, Bergman já enxergava o casamento como algo que, para ser bem retratado, deveria ser livre qualquer julgamento, como algo que extravasa qualquer instituição.

Para a sociedade ocidental de base cristã é difícil aceitar que o casamento, essencialmente, não tem nada a ver com o amor. Embora saibamos que historicamente a instituição nasceu com motivação completamente diversa do sentimento, a fim de estreitar relações políticas, econômicas e sociais, nossa visão desde o século XII foi construída com base no consentimento, que tem o amor como alicerce principal. Para a sociedade do século XXI, casar-se é a mais alta forma de demonstração do amor, é o momento onde o sentimento é materializado. No entanto, porque justo quando entendemos o casamento como algo tão dependente do sentimento, é quando temos a maior taxa de divórcios? Só no Brasil, em 2020, tivemos 76 mil casais divorciados. O maior número até agora.
É provável que parte do problema esteja na compreensão errática, que também tiveram Jonah e Marianne, de que o casamento seria essa relação hermética, feita na medida exata para caber dentro de uma caixa cercada dos limites que a sociedade impõe. A ausência de liberdade e individualidade na relação conjugal, junta a falsa ideia de que o que cabe para todos, logo também cabe para mim, é a ruína de qualquer relação humana e é, também, o que leva os protagonistas à sua primeira crise. Negando quaisquer problemas, a imagem de casal perfeito deveria permanecer intacta e ambos, portanto, viviam sob o véu dessa idealização tradicionalista, pouco compreendendo as suas motivações dentro da dinâmica do casal ou mesmo quem de fato eram na ausência um do outro.

Sendo o filme um corte de uma série para TV, Bergman divide a história em capítulos que têm como foco momentos diferentes do relacionamento, ligados bem mais pelo sentimento que Jonah e Marianne cultivam um pelo outro que pelo vínculo matrimonial, que logo no início deixa de existir. Com o passar dos anos, o casal passa por um processo de desgaste emocional intenso que vai significar uma reconstrução de ambos enquanto indivíduos independentes. Sendo mulher, Marianne é a que mais sofre dentro dessa relação descompensada. Sendo abandonada e posteriormente agredida, Marianne tem uma relação de dependência com Jonah que tem sua origem na repressão que sofre desde pequena. Já Jonah tem o clássico posicionamento do homem médio com crise da meia-idade, que para reafirmar sua masculinidade sente que precisa se relacionar com mulheres jovens a fim de descobrir quem realmente é.
A verdade é que essa dinâmica, infelizmente, não é estranha a nós. De mulheres que são constantemente reprimidas e deixam de entender-se por essa razão a homens que medem sua autoestima apenas no seu mérito com mulheres, muitos casais acabam não fugindo desse padrão. Vira e mexe, esse é o molde de relacionamento que gera ao menos metade do número dos divórcios que citei antes, pela simples falta de compreensão de si mesmos e cultivo da ideia de que se relacionar é sinônimo de abrir mão da própria liberdade. Por isso, quando Bergman com seus close-ups divide os rostos e enche a tela - e os nossos olhos - com uma visão poética daquele caos, é quando diante dos olhos estamos percebendo que há unidade no casal, mesmo no conflito existencial que compartilham. Sem entender a complexidade de seus desejos e sentimentos, a comunicação se torna uma chave que é jogada fora. E que só se recupera do lado de fora do casamento, no outro lado da moeda, em que habita a traição.

Quando Johan e Marianne estão longe do vínculo matrimonial, é quando são verdadeiramente livres. Sem se sentirem reprimidos ou julgados um pelo outro, se veem dispostos a demonstrar interesse enquanto se descobrem juntos. Nos moldes tradicionais, Jonah e Marianne não funcionam, mas fora deles o amor resiste. Bergman impõe ao espectador, no diálogo final, uma reflexão obrigatória sobre o ato de amar. Mesmo depois de navegar pelas nuances de um casamento em crise e nos atingir com a solidão, o ódio e o sexo, o amor continua sendo a maior das angústias para Marianne e Jonah, que ao final abrem mão de suas possíveis implicações morais e éticas para se unirem em uma pequena cabana, na presença confortável um do outro, para puramente se amarem, ainda que isso signifique trair seus parceiros. Porque é com o tempo que a sabedoria e o autoconhecimento se destacam, aproximando nos dois aquilo que formava tamanho abismo.
Nos pesadelos de Marianne, a culpa como seu principal significado. Uma culpa devastadora e amarga, que a atormenta diariamente, seguida de um medo tão existencialista e angustiante, como tudo nessa obra, tão inerente a todos os seres humanos: o medo de nunca ser amada e de nunca amar. Inconscientemente, essa é a motivação de Marianne para estar com Jonah e vice-versa. Pois, em que pese todas as crises, o vínculo emocional que possuem é tão recíproco quanto é o complexo, e subsiste mesmo longe do casamento como se conhece. Cenas de um casamento é sobre isso, afinal. É sobre Ingmar Bergman, mais uma vez, levantando um questionamento profundo sobre algo tão intrínseco às nós quanto o ato de amar.

Provoca, portanto, não apenas mera reflexão sobre a existência ou sendo pioneiro em retratar uma complexa do casamento no Cinema, como serve para levantar um debate ético, moral, religioso e social acerca de algo que nós enquanto sociedade pouco refletimos muito embora esteja tão automático no ciclo da vida. História de um Casamento, Namorados Para Sempre, Foi Apenas Um Sonho... todos os filmes atuais sobre casamentos em crise que não negligenciam a complexidade das relações humanas têm um pouco de Cenas de Um Casamento. Hoje, a série homônima da HBO que readapta a história de Bergman para os moldes da sociedade atual, não deixa de passar por todos os pontos essenciais que nasceram desse filme tão primordial, que se tornou um dos meus favoritos absolutos e cuja genialidade reside em um diretor que sabe explorar as angústias humanas como ninguém.
E você, já assistiu Cenas de Um Casamento? O que achou? Comenta aí!
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