Polêmica e Paul Verhoeven sempre andaram lado a lado. De Instinto Selvagem (1992), ao mais recente Elle (2016), o diretor costuma não poupar o espectador de cenas chocantes e, sempre que pode, une sexo e violência em suas narrativas conhecidas por serem intrinsicamente subversivas. Em Benedetta, “subversão” parece ser a palavra de ordem que irá guiar o diretor pelas críticas que tece à Igreja Católica e seus simbolismos. Verhoeven tenta romper com a ideia imaculada por trás da simbologia cristã e expõe os males históricos da instituição, tentando ilustrar, assim, uma história para além do amor proibido - e à época, absolutamente reprovável - entre a protagonista e a personagem Bartolomea, para adentrar questões morais, sociais e históricas no cenário renascentista italiano do século XVII cruelmente acometido pela peste negra.
Ao menos era assim que Verhoeven gostaria que Benedetta fosse compreendido. No entanto, para mim e para muitos, as questões mais complexas que seriam cerne para destravar todo o potencial dramático do filme acabam por se perder em meio ao exagero do diretor, que pesa a mão, desde à artificialidade desconcertante dos sonhos eróticos e religiosos que Benedetta tem com a Jesus Cristo, até as cenas excessivamente longas e inegavelmente fetichistas entre as personagens principais. Embora tenha dito que sua obra não teve a intenção de polemizar esses momentos ou mesmo de fetichizar o amor lésbico vivido entre Benedetta e Bartolomea, apenas de ‘retratar o mais próximo dos relatos históricos’, seu argumento pouco me convence especialmente quando câmera caminha pelo corpo das personagens femininas de forma diametralmente oposta ao que mulheres como Céline Sciamma realizam na direção, como em Retrato de Uma Jovem em Chamas (2019), por exemplo.
Portanto, em que pese o diretor ter objetivos nobres ao denunciar a hipocrisia do catolicismo e provocar questionamentos de ordem moral sobre a homessexualidade e a liberdade dentro dos espaços religiosos sufocantes, o faz com o olhar de um homem, um “male gaze” através do qual as mais nobres intenções ao final resultam em uma exploração vazia dos corpos das protagonistas como um instrumento-meio de desconforto, que preza mais pelo choque do que pela narrativa. Basta perceber como a relação entre as duas é construída de forma acelerada, abrupta. Se em uma cena Benedetta elogia a beleza de Bartolomea, na próxima esta última já se aproxima da protagonista apalpando a sua bunda em meio a um cântico religioso, na presença de todas as outras freiras. O vínculo entre elas é desenvolvido de forma superficial, a cada sonho novo da personagem-título há uma quebra desastrosa da tensão que vinha sendo anteriormente desenvolvida.
É necessário pontuar que um filme que soube construir a tensão bem melhor em uma conjectura parecida foi Disobedience (2017). Dirigido por Sebastián Lélio, a história de duas judias que recordam uma paixão proibida quando uma delas retorna à sua cidade natal para o funeral do pai, é muito mais eficaz em testar os limites entre a fé a sexualidade do que faz Benedetta com suas interrupções desconcertantes que tornam o filme uma mistura disfuncional entre um romance de época, um thriller erótico e um drama meia-boca. É claro que, vale ressaltar, Sebastián também peca na direção fetichizada, assim como Verhoeven. Mas, ao menos nesse caso, a tensão está ali. Enquanto em Benedetta, a hipersexualização das suas personagens e o desenvolvimento mínimo destas fez com que Verhoeven não sucedesse em nenhum dos caminhos que tentou obter.
Se em um primeiro momento o filme falha em construir a tensão e trata a história das duas com deveras simplicidade, no segundo não consegue convencer que o filme, na verdade, não se tratava dessa relação em si. Por isso, quando achamos que estamos sendo fisgados pela história, há uma nova quebra e dessa vez, de objetivo. Talvez a culpa venha da direção fetichista, talvez venha da montagem que falha em construir uma sequência mais lógica e uma tensão mais convencível ou talvez venha de uma fotografia muito “limpa” com escolhas de ângulos e proporção contraditórios ao tema do filme. Muitos culpados, para um filme, no máximo, mediano. Fato é que seu fator mais forte é mesmo a atuação, que nos convence em momentos os quais nenhum outro aspecto seria capaz de nos convencer. Foi uma história rica, contada de maneira pobre.
O diretor cai nos mesmos problemas de sempre: a hiperssexualização de suas personagens femininas, que beiram seu fetichismo exagerado, em detrimento de uma narrativa melhor desenvolvida. A personagem de Benedetta tinha um potencial incalculável e, embora não tenha lido o livro de Judith C. Brown, me resta pouca dúvida sobre o quão complexa ela poderia ter sido em uma adaptação cinematográfica. No entanto, aos olhos do diretor, foi reduzida a uma mulher objeto de fetiche, que serve ao olhar heteressexual masculino seus desejos e seu corpo, com uma justificativa que fica em segundo plano durante todo o filme, até seus minutos finais: a Igreja Católica lhe foi cruel, e é cruel, até hoje, pelas mesmas razões, mudando apenas o século.
Em razão de uma crítica que fica em segundo plano, muitos serão capazes de perdoar momentos de completo desastre. O objetivo louvável de se condenar a Igreja Católica por sua hipocrisia em assumir a posição inquisitória histórica diante do julgamento de uma mulher que explorou sua sexualidade por amor, enquanto sonhava com um Jesus castrado como seu defensor incondicional, para mim continua longe de ser o suficiente para justificar a exploração dos corpos femininos em tela. Seja pela dor ou pelo gozo, Benedetta é uma tentativa falha de evocar sensações por meios de cenas eróticas ou catárticas, as quais recaem muito mais no “choque pelo choque” do que possuem valor para o desenvolvimento. É um trabalho um tanto lamentável, que apenas parece crescer quando visto separadamente, diante do que fica nas entrelinhas. O problema é que, com tanta distração, fica muito difícil enxergá-las.
A crítica também pode ser lida no site Portal Claquete.
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