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Ataque dos Cães atualiza o arquétipo do cowboy dos anos 30 ao dissecar masculinidade tóxica.

Foto do escritor: Fabiana  LimaFabiana Lima

Há uma forte tendência no Cinema contemporâneo de resgatar o gênero de faroeste, dando a este, antes tão tradicional, cuja história data algo bem próximo ao próprio nascimento do Cinema, uma nova e moderna abordagem. Assim como Chloe Zhao em Domando o Destino e Kelly Reichdart em First Cow, Jane Campion retorna aos cinemas depois de anos para se unir a esse grupo seleto de diretoras que, partindo de uma visão revolucionária sobre o western, desconstroem cada vez mais o arquétipo dos cowboys dos anos 30 que foi sinônimo de masculinidade durante tanto tempo. A partir disso, demais elementos tradicionais do gênero também são modificados para adapta-lo melhor ao contexto atual, preservando, contudo, tudo aquilo que faz o faroeste ser o faroeste: a estética, a história, os planos.


Ataque dos Cães é um modern western que conta com o chamado "female gaze", o dito olhar feminino, de Jane Campion, para abordar como temática central a masculinidade tóxica do personagem Phill (Benedict Cumberbatch) e, não menos importante, para subverter os papéis femininos dentro das tramas de faroestes, antes tão subdesenvolvidos, com a complexa Rose (Kirsten Dunst). Em torno desses dois aspectos principais, a diretora e roteirista desenvolve um filme atípico para os padrões Netflix e desafia o espectador com uma obra que demanda atenção para os mínimos detalhes. Nas sutilezas do roteiro irão morar elementos-chaves para a compreensão do filme. A reviravolta, por exemplo, é silenciosa. Caso você não esteja atento o suficiente para ler as entrelinhas, o plot twist poderá passar despercebido. Por isso, Ataque dos Cães é um filme que valoriza o silêncio, e isso não é nenhuma surpresa se você já conhece o trabalho da autora.

Cercados pelas montanhas suntuosas da Montana dos anos 30, uma paisagem que Campion faz questão de emoldurar com planos abertos de tirar o fôlego, os personagens dessa história estão imersos em solidão. Embora não falte dinheiro, nem companhia aos irmãos, já que estão sempre cercados de pessoas do rancho à pacata cidade, um abismo insiste em separar Phil de George, e do resto do mundo. Existe uma espécie de campo magnético ao redor do personagem de Benedict que repele toda e qualquer manifestação de sentimento, ou possível demonstração de fragilidade. Sua presença em qualquer ambiente basta para que todos os outros personagens presentes apenas orbitem ao redor dele, implorando com medo para não serem vítimas do ódio reprimido que mora nele. Buscando afastar-se de si mesmo, em total negação de quem é, Phil acaba personificando a masculinidade que acredita piamente ser necessária para sua imagem de cowboy, de forma doentia, o que prejudica a todos mas, principalmente, a ele mesmo.


Sozinho na natureza, em um estado que beira a selvageria, é o único momento em que Phil parece estar mais confortável consigo mesmo. Longe de qualquer traço de civilidade, ele se sente seguro o suficiente para abraçar sua sexualidade, em meio à sombra das árvores. Como um animal inteiramente livre e fora de qualquer observação, o protagonista deixa de estar em conflito com ele mesmo e ele passa a não mais sentir necessidade de reafirmar constantemente algo que não é. Faz sentido, portanto, que o filme tenha uma relação interessante com os animais em cena, da castração de um boi a um coelho encurralado e amedrontando com uma pata quebrada, diversos são os paralelos que podem ser feitos com o estado dos personagens, mas principalmente com a fragilidade da masculinidade tóxica usada como máscara por Phil. Talvez a cena mais bonita do filme seja a que o protagonista até então contempla o lenço que pertence a quem outrora lhe foi um grande amor, sutil como Jane Campion sabe fazer, longe do medo e da toxicidade que aquele traço de si mesmo lhe confere. Para Phil, a natureza é um lugar seguro e nós sentimos isso pelas cenas bucólicas, que com uma luz inexplicável invadem a nossa tela e nos transmite paz - nem que seja por um mínimo segundo.

Como disse Clint Eastwood em sua obra mais recente, que também contribui para a desconstrução da imagem machista e tradicionalista dos cowboys, "Cry Macho", realmente essa "coisa de macho" é algo superestimado. Enquanto os cowboys de John Wayne e John Ford fugiam de todo e qualquer vínculo afetivo pois eram sujeitos solitários que vagavam sem destino ou necessária motivação, que não fosse satisfazer suas próprias vontades estabelecendo muitas vezes seu próprio código de ética, os cowboys de Zhao, Campion e Reichdart possuem diferentes narrativas e procuram respostas bem mais profundas dentro de si mesmos. Em Ataque dos Cães, Phil tenta a todo custo manter essa masculinidade estereotipada, mas quanto mais tenta, mais se isola. E, embora seja um típico "cowboy macho", nem por isso é mais feliz, muito pelo contrário. É um sujeito amargurado pela repressão que impõe a si mesmo e, quando se sente ameaçado pela presença de Rose e do seu filho, age como um animal em perigo tentando dominar quem o cerca através do medo.


Vítima desse comportamento doentio, Rose é a personagem feminina complexa que demais filmes do faroeste moderno não tiveram ainda. Focados na figura do cowboy, outros modern westerns deixaram de lado em seus filmes a possibilidade de uma figura feminina que complementasse a intenção de refutar a masculinidade tóxica desse arquétipo, enquanto Campion se permitiu ir além e retratar em Rose todas as consequências da toxicidade de Phil, como se ela de fato absorvesse tudo aquilo que o homem não era capaz de lidar sozinho, adoecendo e enlouquecendo aos poucos por isso. Sua personagem, portanto, personifica o medo do abuso, da violência e da repressão que ter uma figura masculina próxima cujo comportamento é imprevisível representa. A simples presença de Phil se iguala a um abuso psicológico terrível para ela, onde seu único refúgio dentro da própria casa acaba sendo na cozinha e próxima as outras duas únicas personagens femininas da história.

O terror que a adoece se manifesta através do alcoolismo impacta, principalmente, seu filho Peter. O plot do filme paira no ar desde as primeiras frases ditas por ele: "Quando meu pai faleceu, eu só queria a felicidade da minha mãe. Que tipo de homem eu seria se não ajudasse minha mãe?". Peter é a antítese de Phil. pois enquanto Phil amedronta a todos que o cercam e abusa de Rose e de Peter constantemente usando o pretexto de ser um cowboy "tradicional", frio e violento, na realidade não passa de um sujeito frágil e desequilibrado. E Peter, que é taxado de frágil pela sua aparência e sensibilidade, ao final se revela um frio e calculista, cujo comportamento silencioso é nesse caso uma máscara para uma inteligência e resiliência profunda diante da situação que vive. É exatamente isso que torna o filme surpreendente, pois ainda que o roteiro entregue parte dessa revelação no início, quando Jane opta por subdividir a obra em capítulos, acaba mudando sutilmente através de sua estrutura episódica, o foco de um personagem para outro e o que faz com que a morte do protagonista seja natural como um sacrifício que precisava ser feito dentro daquele ambiente animalesco que prejudica para sempre que Phil seja outra pessoa que não aquela que machuca a si e a todos.


"Livrai-me da espada, livra a minha vida do poder do cão", essa é a frase final em que, de forma brilhante, Campion deixa nítido para nós: a vingança é um prato que se come frio. Tão frio quanto possa parecer esse filme, que é tudo menos fácil. Mas que por tudo isso, merece todo reconhecimento.

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